Sigo minha viagem para Santo Domingo para o encontro da ADIMI- rede de músicos e produtores da América Latina. Não tenho a mínima ideia do que vou encontrar. Do Caribe, não conheço quase nada, apenas Cuba. E claro, as imagens dos postais e cadernos de turismo.

Também sei que a República Dominicana compartilha a ilha com o Haiti, mas não exatamente o mesmo destino trágico.

Quem organiza o encontro é Freddy Ginebra, escritor e agitador cultural, também proprietário de uma agência de publicidade e que dirige a Casa de Teatro, por ele fundada há 37 anos. O conheci em Medellín, no ano passado. É uma pessoa pra lá de interessante, carismático e com um humor muito particular.


Na verdade o que me trouxe a República Dominicana foi o desejo de conhecer melhor o seu trabalho, além de claro, estar em um lugar novo, com tudo o que isto implica – gente, sons, paisagens, gostos e odores. Como vivo neste momento a experiência de dirigir um pequeno centro cultural, Casa do Núcleo, fico também querendo ter contato com iniciativas similares.

Chego de uma escala no Panamá e desembarcando sou convidado a ir direto a sala vip, nunca havia passado por esta experiência. Em seguida ao hotel, aonde rapidamente deixo a mala e me dirijo a Casa de Teatro para um jantar inaugural do encontro. E o lugar ferve, clima festivo pela alegria do encontro de músicos, produtores e programadores musicais de todo o continente.
Freddy conduz tudo como um feliz “jedi”, nos saúda em alto som, anunciando que a incrível orquestra de travestis acaba de chegar, encantado com a presença de todos, vai introduzindo-nos de sala em sala em seu universo mágico, que termina em um terraço, aonde descalços, fazemos um pedido e tomamos um trago do ótimo “Ron” local. Pronto, estamos iniciados.

Tudo vai se misturando, trabalho, contos, estórias e muito humor. Um dos objetivos deste encontro é apresentar, a todos os profissionais dos países convidados, uma mostra da produção musical dominicana. Nisto consiste o primeiro dia.

Passamos a manhã conversando com os grupos e solistas locais, recebendo seus materiais, CDs e DVDs. Sabendo que pela quantidade de trabalho que sempre me espera, se eu deixar para ouvir na volta, não o farei, termino por escutar a maior parte no mesmo dia no hotel e me defronto com uma produção que, embora bastante eficiente, ainda não encontrou, no campo da música urbana contemporânea, uma identidade clara; e que repete em grande parte, modelos da indústria. Alguns poucos trabalhos se destacam.

No almoço vamos a um ótimo restaurante, como tudo o que nos proporciona a cada instante nosso anfitrião. Ele anunciando uma surpresa, reserva uma cadeira, em poucos minutos, surge Juan Luis Guerra, o mais conhecido artista dominicano, que começou sua carreira no espaço de Freddy.
Tranqüilo conversa com todos, especialmente sobre música e tira infinitas fotos com cada um, não é fácil ser uma estrela, mas ele o faz com paciência e gentileza.

À noite assistimos a um concerto de um dos mais talentosos músicos locais, “El Prodígio”, que toca a “gaita de ponto” ou o “pé de bode”, como é conhecido no nordeste brasileiro, um instrumento com recursos limitados, fundamental na música tradicional local. O “perico” que é o merengue mais tradicional com sanfona, tambora e guira, um recoreco nativo.

Seu projeto busca relacionar este universo com o jazz, em uma formação que inclui piano, baixo, sax, bateria, guitarra e congas, funciona bem em diversos momentos, mas é tocando o autêntico “perico” que “El Prodígio” se destaca. Em seguida na Casa de Teatro se apresenta Victor Victor, com seu quarteto, um bom projeto de “bachata”, com um excelente guitarrista e um bom baixista.

Na Repúplica Dominicana duas correntes se destacam: o merengue, que ganhou o mundo e a bachata, um bolero mais rápido, também criação dominicana. O merengue se desenvolveu em várias direções, desde o mais brega possível até aquela quem tem um acabamento melódico, harmônico e rítmico mais interessante, porém o que encontro de mais musical em CDs, são as gravações mais antigas até década de 70, 80, o que inclui Johnny Pacheco.

Passamos o dia seguinte em reunião no Centro Cultural de Espanha com os membros da rede. Varias propostas de circulação de grupos musicais, e trocas de informação na web são debatidas. Discutimos questões como identidade, e mercados autônomos. É um bom grupo e as conversas avançam de forma colaborativa. As diferentes visões vão se encaixando, não há conflitos.

À noite, uma amostra ao vivo dos grupos que encontramos no dia anterior. Uma cantora se destaca: Pat Pereira.

No sábado, Freddy tira mais uma da cartola, uma viagem até a ilha de Samoa, boa parte, pelo mar. Vamos de ônibus até La Romana, uma rica cidade de veraneio; e todos me dizem: “não é a realidade local”. Aonde se encontra um hotel-resort e também um centro cultural com museus e uma das melhores escolas de design do mundo. Um teatro romano ao ar livre com capacidade para seis mil pessoas, palco de grandes nomes da indústria. Já passaram Sting, Santana, Sergio Mendes, Luciano Pavarottie assim por diante. Tudo construído pelo presidente da GulfEastern, que nos anos 50, 60 se apaixonou pelo país. Apesar de construções com arquitetura local, e grande vegetação, tem uma atmosfera um tanto artificial.

Dalí embarcamos de barco até a ilha. É um passeio incrível pelo mar caribenho, água translúcida e praias quase desertas, pois todas as ilhas são reservas florestais, banhos de mar, peixe, frutas, cerveja, “Ron”, ótimas conversas com Gerry, mexicano, músico e produtor do selo Intolerância, e Alejandro, um escritor cubano, casado com uma coreografa, cujo belo trabalho, nós iremos assistir esta noite.

Vão-me aclarando todas as perguntas que sempre tive em relação a Cuba. Apesar de ter estado lá, tocado e convivido com músicos cubanos, vários pontos para mim sempre permaneceram obscuros e vou entendendo os limites de cada regime político. Voltamos de catamaram, compartilhamos o barco com um grupo de turistas alemães que passam boa parte da viagem dançando com guias locais, algo muito próximo do nosso axé. Surreal estar em um mar tão lindo com uma música destas, não há o que fazer.

Seguindo em mais conversas, com uma linda paisagem de fundo, vou conhecendo a história dos dominicanos e a terrível saga de um povo que foi dominado durante 30 anos, de 30 a 60, por um ditador, Truijo, cuja crueldade e ambição parecem superar qualquer ficção.

Em nossa permanência em Santo Domingo ficamos no bairro colonial, casas, igrejas muito antigas e em boa parte, preservadas. Ali está a primeira catedral das Américas; é aonde Colombo desembarcou. A primeira cidade fundada por europeus em todo o continente, casas de 500 anos estão em ótimas condições, incluindo aquela aonde seu filho e neto, viveram.

História e lendas vão se misturando. Em toda a cidade, poucos prédios e com alturas baixas, muitas casas, o que a torna muito agradável e em certos, locais bem bonitas.

Domingo, passamos – mexicanos e brasileiros (mais dois estão no encontro: Thales do fora do eixo de Minas e da Abrafin, e Marcelo do Festival Rasgun, Pará) – sentados em diferentes mesas pelo bairro, conversando e trocando experiências. Às 18h vamos a um dos eventos mais simpáticos da cidade, músicos se reúnem em uma das ruínas a céu aberto, e tocam som cubano e merengue; festa de rua com tudo o que tem de bom, dança, boa convivência, velhos, crianças.

Na segunda, vou conhecer a casa do Brasil, um centro cultural nos moldes da aliança francesa. Cris que cuida do local é também poetisa, e muito gente boa, que vive já há quatro anos na ilha e é uma ótima ponte e referência para qualquer brasileiro que por ali passe. De lá vou caminhando até o centro e vou me surpreendendo com o que vejo uma cidade grande com movimentação intensa de carros e pedestres. Tem uma praça cultural no caminho, com vários equipamentos, museus, teatros em prédios suficientemente grandes.

Meu objetivo é a Livraria Cuesta, que me recomendaram, e de fato vale a pena. É uma destas grandes livrarias, com uma ótima seleção de títulos, onde encontro vários sobre música dominicana e latina em geral, dos quais compro alguns para termos na Casa do Núcleo.

À noite, dois acontecimentos interessantes, um encontro de poesia na casa de teatro, onde jovens poetas declamam e compartilham suas visões em comentários abertos.

Mais tarde vou à residência do Embaixador brasileiro, que é também um pianista. Sentamo-nos à mesa e é sempre uma boa conversa, com alguém que já viveu e trabalhou em países como Angola, Peru, Estados Unidos, além do mais sendo músico e adorando também Radamés Gnatalli, um dos meus ídolos.

A República Dominicana reflete a injustiça social do continente. Pobreza e riqueza se misturam. Parece que em vários bairros falta água e luz a noite, o que com este calor não é brincadeira. Pela zona colonial se pode caminhar tranqüilo, inclusive à noite, ao menos assim senti. Muitos haitianos vivem no país, é a mão de obra barata local. Curiosamente de 1820 poucos a 1840 e tantos o Haiti dominou a ilha. Assim os dominicanos comemoram o dia da independência, como sendo aquele em que se libertaram dos haitianos e não dos espanhóis.

A vida dá voltas.